A disfunção do trato urinário inferior é a presença de sintomas urinários quando a criança já desfraldou, na ausência de infecção do trato urinário (ITU), doenças neurológicas e anatômicas do trato urinário inferior (ITU).
Entre esses sintomas se incluem urgência miccional (vontade urgente de urinar), incontinência urinária diurna, alteração da frequência miccional, dificuldade miccional. Muitas vezes, as crianças apresentam também constipação intestinal.
Quando essas condições se associam devemos usar o termo disfunção vesical e intestinal .
Prevalência
Os sintomas da disfunção do trato urinário inferior estão presentes em até 20% das crianças, ocorrendo mais em meninas, numa relação de 8:1.
FISIOPATOLOGIA
A disfunção miccional decorre da alteração de um dos componentes do processo normal da micção, levando ao seu não funcionamento de forma integrada.
As alterações da função do trato urinário inferior podem ser divididas em dois grupos: aquelas causadas por alterações neurológicas e as funcionais.
Os distúrbios miccionais causados por alterações neurológicas como bexiga neurogênica são observadas mais frequentemente nos disrafismos espinhais (mielomeningocele, lipomeningocele, agenesia sacral e lesões ocultas) e na paralisia cerebral.
Os distúrbios miccionais causados por alterações funcionais ocorrem em crianças sem evidências de doença neurológica. Elas podem apresentar as alterações miccionais diurnas e noturnas, infecções urinárias de repetição, cicatrizes renais e refluxo vesico-ureteral. A associação com constipação intestinal e escape fecal, por disfunção do assoalho pélvico, também é bastante frequente, caracterizando o que é conhecido como disfunção vésico-intestinal (do inglês “bladder bowel dysfunction”), outrora chamada de síndrome da disfunção de eliminação. A importância do diagnóstico precoce deve-se à possibilidade de instituição do tratamento, diminuindo as repercussões sociais e psicológicas da incontinência, podendo evitar a lesão renal com a formação de cicatriz e perda da função renal.
Entretanto, apesar da importância clínica, nem sempre os sintomas diurnos sugestivos de disfunção miccional são evidentes, necessitando de um olhar treinado para detectá-los.
Os pais, muitas vezes, não relatam os sintomas diurnos por desconhecê-los ou por considerá-los normais. Outras vezes, atribuem a urge-incontinência à preguiça da criança que brinca até o último minuto em vez de ir ao banheiro logo que sente vontade, ou que não vai ao banheiro antes de sair de casa, precisando sempre parar no caminho para evitar a perda urinária. Habitualmente, o que motiva a consulta são as perdas urinárias noturnas e todo o transtorno que delas decorre: pijama, roupa de cama e colchão molhados; a interrupção do sono dos pais; o isolamento social da criança por vergonha e diminuição da autoestima e as restrições impostas às atividades dos irmãos.
Desta forma, uma anamnese detalhada é fundamental na avaliação e classificação desses pacientes.
Sintomas
Os sintomas são classificados de acordo com a fase de esvaziamento ou enchimento da bexiga. São caracterizados como aumento ou diminuição da frequência miccional, incontinência, urgência, noctúria, hesitação, esforço, jato fraco, jato intermitente, manobras de contenção, sensação de esvaziamento incompleto, gotejamento pós-miccional, dor genital ou do trato urinário inferior.
Sintomas de Armazenamento
Os sintomas de armazenamento podem agrupar:
- Incontinência urinária (perda urinária intermitente ou contínua) – podendo estar
associada a malformações do trato urinário, tais como ectopia ureteral ou lesão
do esfíncter externo; - Alteração da frequência miccional – acima de 7 vezes por dia ou abaixo de 4 vezes
por dia; - Urgência miccional – necessidade súbita e inesperada em crianças com controle
miccional ou maiores de 5 anos de idade; - Noctúria – despertar noturno para micção em crianças maiores de 5 anos de
idade.
Sintomas de Esvaziamento ou Miccionais:
Sintomas pouco relatados pelos responsáveis e que ocorrem em crianças acima de 7 anos e compreendem:
- Hesitação (dificuldade de início da micção) – relevante em crianças maiores de 5 anos de idade.
- Jatos fracos – redução da força de micção.
- Jatos intermitentes – micção em diversos jatos fracos.
- Esforço miccional – a criança adota uma postura que leve ao aumento da pressão
abdominal para o início ou a manutenção da micção.
Outros Sintomas
1. Manobras posturais para contenção objetivando atrasar ou diminuir o desejo miccional: manter-se na ponta dos pés, cruzar as pernas, pressão do períneo com o calcanhar (relevante em crianças acima dos 5 anos de idade);
- Gotejamento pós miccional podendo estar associado com refluxo de urina para a vagina;
- Dor na região genital e trato urinário inferior – dor de difícil localização em criança pequena;
- Sensação de esvaziamento vesical incompleto – reconhecido pelos adolescentes.
Condições clínicas da Disfunção do Trato urinário inferior em crianças
Bexiga Hiperativa e Urge-incontinência
O tipo mais comum de disfunção do trato urinário inferior em crianças ocorre durante a fase de enchimento vesical pela associação entre a hiperatividade do músculo detrusor seguida por contrações voluntárias do assoalho pélvico para bloquear as perdas urinárias acarretando urgência, urge-incontinência ou aumento da frequência miccional. Na tentativa de manter a continência urinária, poderá ocorrer a contração simultânea do esfíncter uretral externo quando da contração não fisiológica do detrusor causando uma obstrução ao esvaziamento vesical, com aumento da pressão na bexiga até que ocorra seu relaxamento ou esvaziamento e a consequente micção com aumento da pressão do jato urinário.
Caso não ocorra o impedimento da micção durante a contração involuntária do detrusor, o esfíncter uretral externo relaxa e a micção ocorre com baixa pressão ao que denominamos de urge-frequência. Este diagnóstico depende de um questionário detalhado uma vez que muitos pacientes reduzem a ingesta hídrica na tentativa de diminuir as perdas.
Adiamento da micção
A presença de manobras de contenção com o objetivo de adiamento da micção, podendo estar associada a distúrbios de comportamento e/ou alterações psicológicas, o que causa a menor frequência miccional e a sensação de urgência com plenitude vesical.
Bexiga hipoativa
Anteriormente denominada “bexiga preguiçosa” devido ao aumento da capacidade vesical e do resíduo pós miccional, acarreta uma baixa frequência de esvaziamento vesical, com a necessidade postural de aumento da pressão intra-abdominal para o início, manutenção e conclusão da micção. A criança poderá permanecer longos períodos sem urinar.
Micção disfuncional
Ocorre pela disfunção na fase miccional ou de esvaziamento, sendo causada pela contração do assoalho pélvico durante o ato miccional. O diagnóstico desta alteração é feito pela avaliação urodinâmica – onde são verificadas as medidas iniciais de urofluxometria demonstrando curvas com fluxo intermitente (interrompido) ou flutuante; e avaliação ultrassonográfica do resíduo pós-miccional. Os sintomas dependem da frequência e gravidade da alteração funcional, podendo variar de uma incoordenação miccional até a completa dissinergia vesico-perineal.
A uretra em pião, ao exame radiológico, é um achado amplamente conhecido (representa a contração involuntária da bexiga e do esfíncter externo para evitar a perda urinária o que acarreta aumento da pressão vesical levando a dilatação uretral). Outras alterações radiológicas como bexiga trabeculada ou com divertículos e aumento do resíduo miccional também podem ser vistos.
Refluxo vesico-ureteral e lesões do trato urinário superior ocorrem com frequência sendo de grande importância o diagnóstico e tratamento desta patologia pelos riscos futuros à saúde destas crianças.
Obstrução
O aumento da pressão detrusora e redução do fluxo urinário pode causar o impedimento mecânico ou funcional do esvaziamento vesical.
Incontinência por estresse
Em situações de stress ou de aumento de pressão abdominal pode haver pequenas perdas urinárias; são mais comuns em crianças com patologias neurológicas.
Refluxo vaginal
Ocorre em meninas no período pré-puberal com controle miccional adquirido e sem a presença de outros sintomas. Decorre da micção com as pernas aduzidas com
retenção de urina dentro do introito vaginal levando a incontinência urinária após a micção. Pode haver ainda inflamação vaginal e adesão labial.
Incontinência do riso
A perda urinária não tem causa conhecida. Discute-se se o riso cause a hipotonia vesical com o relaxamento uretral levando a incontinência urinária, fato este não comprovado em estudos dos esfíncteres uretrais ou pela hiperatividade do detrusor.
Frequência urinária diurna extraordinária
Aumento da frequência urinária diurna sem incontinência, podendo desaparecer com o sono, ser precedido ou coexistir com este. Ocorre mais comumente em pré- escolares saudáveis sem história prévia de infecções urinárias ou outras patologias e que apresentem estresse emocional agudo.
Comorbidades
O médico deve sempre pesquisar sintomas urinários e suspeitar da disfunção nos casos de infecção urinária em crianças maiores de dois anos de idade.
A disfunção do trato urinário inferior está associada a diversas comorbidades, como: constipação e encoprese, infecções urinárias ou bacteriúria assintomática, refluxo vesico-ureteral, déficit de atenção e hiperatividade, transtorno desafiador opositor, distúrbios de aprendizagem e do sono.
Existem estudos relatando que a constipação e os distúrbios funcionais do trato digestório podem estar relacionados com as disfunções miccionais, e a combinação destas associam-se com infecções urinárias recorrentes.
Diagnóstico
O diagnóstico dos distúrbios funcionais do TUI consiste de uma anamnese detalhada, exame físico, diário das eliminações e medida do fluxo urinário. O trato urinário superior deve ser avaliado em crianças com ITU de repetição pelo ultrassom (US) renal. A indicação de procedimentos mais invasivos, como o estudo urodinâmico e a uretrocistografia miccional, fica restrito aos casos mais complexos com ITU recorrente, alterações do trato urinário superior e aqueles que não respondem às diversas opções de tratamento. O teste de 4 horas de observação miccional tem sido utilizado em crianças pequenas, antes do treinamento de esfíncteres, com sintomas de DTUI antes de decidir por propedêutica mais invasiva. Esse teste avalia a frequência das micções em 4 horas, a quantidade urinada a cada micção e o esvaziamento da bexiga a cada micção, verificado pelo resíduo pós-miccional.
Anamnese
É importante que seja estruturada com base em um questionário, já que muitos dos sintomas não são revelados espontaneamente pelos pacientes e/ou familiares, e deve incluir os aspectos a seguir apontados:
Antecedentes familiares; idade do início do treinamento esfincteriano e seus resultados; dificuldades enfrentadas e estratégias utilizadas, a fim de se conhecer o caráter primário ou secundário da incontinência. Atenção especial deve ser dada ao relato dos sintomas diurnos: frequência e volume das perdas urinárias, urgência miccional, micção infrequente, manobras de contenção para se evitar as perdas urinárias, alteração do jato urinário – fraco, interrompido, gotejamento -, dor suprapúbica. É preciso, também, avaliar o hábito intestinal (constipação e/ou incontinência fecal ou encoprese) e dietético, principalmente a ingestão de líquidos à noite e o consumo de cafeína – chocolate, chás, refrigerantes – potente estimulante das contrações do detrusor.
Antecedentes de infecção urinária de repetição; presença de doenças neurológicas ou urológicas; vulvovaginites; constipação intestinal, encoprese ou escapes fecais, sugestivos da presença de um distúrbio funcional do trato urinário inferior mais complexo, que necessita de uma investigação e tratamento diferenciados.
É igualmente importante verificar o perfil psicossocial da família, já que condições socioeconômicas precárias, intolerância dos pais, alcoolismo, uso de drogas, conflitos familiares e problemas comportamentais da criança são fatores que comprometem significativamente o sucesso do tratamento.12
Exame físico
Recomenda-se atenção a alguns aspectos clínicos que permitam uma diferenciação com a bexiga neurogênica e com problemas estruturais do trato urinário inferior: exame cuidadoso da região genital – epispádia, hipospádia, sinéquia labial, aparência e localização dos meatos uretral e himenal e perdas urinárias durante o exame -, inspeção da coluna lombossacra em busca de sinais neurocutâneos que possam estar associados com espinha bífida – lipoma, pigmentação anormal, nevus, sinus, aumento de pilosidade, assimetria de sulco interglúteo. Faz-se necessário, ainda, pesquisar a sensibilidade de reflexos perineais de área inervada pelos segmentos sacrais S1-S4 e tônus do esfíncter anal, bem como observar alterações na marcha.
Diário miccional
O mapa de volume urinário/frequência é um diário que registra a ingestão hídrica e o volume urinado em 24 horas. O diário miccional dá informações objetivas do número de micções diurnas e noturnas, juntamente com o volume e os episódios de perdas urinárias. Estes dados são fundamentais para se conhecer e acompanhar a rotina miccional da criança. No diário também devem ser registrados as evacuações e os episódios de perdas fecais. O preenchimento das micções é solicitado por um período de 2 dias que pode compreender o final de semana, enquanto o hábito intestinal deve ser anotado pelo período mínimo de uma semana. A ingestão hídrica diária deve também ser registrada, com o objetivo de se obter informação sobre a hidratação do paciente.
Exames complementares
Recomenda-se a realização do exame qualitativo de urina para avaliação de leucocitúria, hematúria, glicosúria, déficit de concentração urinária e a urocultura, quando a análise de urina for sugestiva de infecção urinária.
Urofluxometria
A taxa do fluxo urinário (ml/s) correlaciona a medida do fluxo urinário (ml) com o tempo de fluxo (seg). O padrão do fluxo urinário pode ser também descrito como: contínuo (em forma de sino ou de torre, que é a curva normal), intermitente (ou fracionado) e “staccato”.
O registro gráfico do formato da curva de urofluxo é um procedimento simples e útil no diagnóstico dos DTUI em crianças. Principalmente quando associado com a eletromiografia dos músculos do assoalho pélvico, permitindo que se avalie se a criança, no momento da micção, contrair o assoalho pélvico (atividade aumentada desses músculos) evidenciando a incoordenação vesicoesfincteriana que está presente no espectro mais grave das DTUI, a micção disfuncional.
O estudo urodinâmico completo, apesar de ser o melhor método para avaliar pressão vesical, hipo ou hipercontratilidade do detrusor e obstrução infravesical além da função vésicoesfincteriana, não tem sido indicado na investigação inicial de DTUI, ficando restrito para casos selecionados que apresentam, à urofluxometria, padrão de fluxo achatado e, ao US do trato urinário, achados como dilatação pielocalicinal, uma parede vesical espessada ou com divertículos, sugerindo obstrução ou pressão aumentada de armazenamento.
Exames de imagem
O ultrassom (US) dos rins e das vias urinárias, com a avaliação dinâmica da micção – investigação não invasiva que estuda, funcionalmente, os tratos urinários superior e inferior, com informações sobre a parede da bexiga, o enchimento vesical, a capacidade funcional da bexiga, a presença de contrações involuntárias do detrusor, a presença de resíduo pós-miccional e o comportamento da pelve e do ureter durante o enchimento e esvaziamento vesical, é um exame que fornece informações importantes para o diagnóstico e acompanhamento das DTUI. Essas alterações vão variar de acordo com a classificação da DTUI, podendo observar uma capacidade vesical estimada pequena para a bexiga hiperativa e, até mesmo, capacidade vesical muito aumentada nos casos de micção infrequente, por exemplo. Outras alterações que podem estar presentes são: dilatação dos ureteres, parede espessada ou trabeculada e a presença de resíduo pós-miccional aumentado. É uma técnica de diagnóstico complementar extremamente útil para o planejamento terapêutico e seguimento das crianças. O valor das informações desse exame depende muito do treino do examinador.
A uretrocistografia miccional está indicada em casos de ITU recorrentes e presença de hidronefrose detectada ao US dos rins e vias urinárias com o objetivo de detectar refluxo vesicoureteral ou alterações anatômicas da bexiga (parede espessada ou mesmo trabeculada com presença de divertículos) e uretra (imagem de uretra em pião).
Tratamento da Disfunção do trato urinário inferior em crianças
O tratamento deve ser individualizado e envolve medidas não farmacológicas, como abordagem cognitivo-comportamental, fisioterapia e biofeedback, além de estímulo à reeducação miccional, como micção com hora marcada, postura adequada no vaso, orientação sobre ingesta hídrica e dieta (evitando alimentos como cafeína e chocolate), além dos alarmes para enurese noturna. O tratamento farmacológico envolve o uso de anticolinérgicos, antagonistas alfa-adrenérgicos, desmopressina e toxina botulínica, devendo sempre ser indicados pelo especialista.
A fisioterapia já vem sendo indicada como primeira escolha na maioria dos casos. Um tratamento moderno, sem efeitos colaterais e com excelentes taxas de sucesso, próximo dos 100%.
O papel do médico especialista, urologista pediátrico, é fundamental para o reconhecimento do tipo específico de DTUI e para a abordagem terapeutica mais adequada a cada caso.
Por serem queixas pouco consideradas pelos pais e pouco exploradas na consulta de peidatria, o encaminhamento tardio para o urologista pediátrico e as consequências da DTUI impactam negativamente no pleno desenvolvimento das crianças acometidas.
Conclusão
A DTUI nem sempre é evidente e o diagnóstico pode não ser feito caso não haja um grande nível de suspeição durante a consulta médica. Muitas vezes, a DTUI só é investigada e diagnosticada quando há relato de ITU recorrente. A incontinência urinária nem sempre é valorizada como motivo de consulta médica e, em muitas ocasiões, vista com embaraço pela criança e seus familiares, mesmo diante do profissional de saúde. Deve-se ficar atento para as consequências orgânicas (ITU, nefropatia do RVU, hidronefrose e cicatrizes renais) que, muitas vezes, estão presentes quando o diagnóstico é tardio. A anamnese bem conduzida e dirigida, para avaliar os hábitos miccionais, ainda constitui uma das melhores ferramentas para o diagnóstico das Disfunção do Trato Urinário Inferior nas crianças.